Oi, tudo bem? Eu sou o Gui e vim aqui pra compartilhar com você um pouco do que encontrei na minha jornada de plantar na cidade até vir parar no campo.
Eu escrevo esse texto sentado de frente pra uma roça agroflorestal que hoje produz mais de 40 variedades de plantas, na serra da Cantareira, bem pertinho de São Paulo, que é onde essa história começa.
Não nasci na roça nem nunca trabalhei com agricultura na minha vida. Nasci na pequena cidade de Cajobi, mudei pra maior cidade da América Latina e fui vendo o verde desaparecer cada vez mais da minha rotina de comunicador. Cozinhar era o elo que ainda preservava minha conexão com a terra. Eu sempre cozinhei muito e tive meus temperos e outros verdinhos plantados na janela de casa, mas nunca imaginei que mais coisa pudesse ser produzida naquele lugar tão cheio de concreto.
Foi no dia 17 de Setembro de 2009 que, enquanto procrastinava algumas coisas de trabalho, me deparei com uma foto que mudou tudo. Era uma horta no telhado de um galpão na terceira maior cidade da América: Nova Iorque. Brooklyn Grange, fui saber depois, era o nome daquela horta.
Aquele encontro casual, numa tarde qualquer ali na Faria Lima gerou transformações que eu não podia nem imaginar na minha vida. A primeira delas foi uma quebra simbólica da separação rural e urbano. A foto era muito simples, talvez eu já até tivesse cruzado com hortas urbanas escondidas pelos cantos da cidade, mas foi o contraste daquela imagem que plantou uma semente importante no meu jeito de pensar: sim, as cidades podem ser também espaços de produção de alimento.
Aquele encontro disparou a vontade de plantar em São Paulo. Me perguntei se alguma coisa parecida já acontecia por ali e fui dar uma espiada no google pra saber se já tinha gente fazendo agricultura na cidade. Na mosca. São Paulo é uma cidade produtora de alimentos desde sempre.
Nas buscas cruzei com várias iniciativas que organizam produção de comida em áreas urbanas. O Cidades sem Fome foi a primeira delas. Li também sobre cooperativismo entre agricultores na zona sul de São Paulo e dos desafios de segurar a urbanização que avança sobre o espaço rural. Mas foi em um grupo no Facebook onde encontrei outros loucos (ou nem tanto) que nem eu. Uma comunidade chamada Hortelões Urbanos que, em 2013 tinha pouco mais de 3.000 pessoas. Feita de gente que morava no cimento, quase não tinha terra disponível, mas tinha vontade de plantar sobrando.
Me conectei na hora com um pequeno grupo de pessoas que buscava uma área pública pra começar uma horta urbana comunitária e foi assim que nasceu a Horta do Centro Cultural São Paulo. 4 anos depois daquele encontro com a foto, foi quando eu vi aquele sonho se concretizar sob meus pés, na companhia de muita gente, de frente pra 23 de Maio, um mar de asfalto e cimento que rasga a cidade. Foi lindo demais.
Começar a plantar na cidade foi um salto bem importante na minha relação com a agricultura. Eu, que antes plantava nos meus vasos em casa e tinha muita dificuldade de entender os sinais que as plantas me davam quando desenvolviam alguma doença ou eram atacadas por uma “praga” comecei a me familiarizar com conceitos da agroecologia, do manejo ecológico de solos, do controle biológico de desequilíbrios.
Passei a prestar mais atenção no clima, nas fases da lua, em outras dimensões que afetavam minha prática de plantio, ainda que dentro da sacada do meu apartamento.
Ir pra rua trouxe novos desafios e também muitos aprendizados. Me senti, pela primeira vez, responsável e autorizado a cuidar do espaço público. Entendi que era meu direito e também meu dever cuidar de uma praça perto de casa e descobri muito prazer em fazer isso, sobretudo quando acompanhado de mais pessoas.
Vi aquela prática – quase inocente – de cultivar temperos na sacada de casa se transformar em uma ferramenta poderosa de conexão: com a cidade, com a natureza, com outras pessoas e comigo mesmo. Os finais de semana passaram a ser ocupados com mutirões de plantio, de colheita ou de manejo em hortas urbanas. De repente passou a ser também meu trabalho. Dediquei meus últimos anos morando em São Paulo a trabalhar com educação, usando hortas comunitárias como plataformas de aprendizagem.
Quem podia imaginar que a vontade de ter um pezinho de manjericão poderia gerar tanta transformação?
Mas calma que a história não acaba por aí. De repente a cidade começou a ficar pequena pra minha vontade de plantar e eu achei que era hora de encarar uma jornada que eu via se aproximar já há algum tempo: e se eu for morar na roça?
Depois de uma sucessão de eventos resolvi deixar São Paulo.
Foi dia 17 de Fevereiro de 2020 quando saí da cidade, a bordo da minha bicicleta e carregando uma dezena de coisas que cabiam nos seus alforges com uma vontade: queria aprender mais sobre plantar, regenerar, cozinhar e a viver de forma autônoma no campo.
Um ano e meio depois, cá estou, com muita coisa incrível na bagagem. Eu plantei, colhi, cozinhei e aprendi tantas coisas que é difícil até de nomear, mas tem aquelas que eu carrego aqui comigo e que queria compartilhar com você:
É menos sobre estar na roça e mais sobre como a gente se coloca na hora de fazer as coisas.
Eu passei esse último ano fazendo muitas coisas sem saber como fazer todos os dias. Desde afiar uma enxada até um parto de porca. Todo dia eu precisava enfrentar o medo de não saber o que precisava ser feito. E isso é assustador e incrível ao mesmo tempo. Todo dia a gente tem a chance de exercitar nosso processo criativo e resolver um problema novo.
Mas aprender a aceitar o erro também é necessário. E, quando a gente tá falando de plantio, às vezes o erro é algo que fica ali, plantado no espaçamento errado, bem na sua frente, por meses a fio, te olhando e dizendo: você errou.
O campo que eu vivi é esse lugar onde a especialização não tem vez. E é um convite diário a experimentação. Porque não plantar desse jeito? E se eu colher agora? E se, e se?
E esse sentimento de querer fazer as coisas me leva a um segundo aprendizado:
Sim, dá pra fazer as coisas.
A gente vai sendo convencido de que não pode mais fazer as coisas com as próprias mãos. Ou ainda, a gente tem visto o nosso tempo livre pra resolver as coisas cada vez mais removido das nossas vidas. Não dá mais tempo de parar pra fazer coisas simples como cuidar de um alecrim na janela ou regar as samambaias na sala. Parece que a urgência tomou conta de tudo. É tudo trabalho.
E, de repente, a gente se vê terceirizando coisas que antes poderiam estar sob nosso controle. Plantar é uma dessas coisas. Cozinhar também.
Eu fico um pouco arrepiado quando leio sobre a agricultura do futuro defendida por alguns. Mecanizada. Drones. Irrigação por satélite com entrada pra CD. Inacessível. Custa caro. Não é pra qualquer um. A cozinha sofre com a mesma coisa. As casas com cozinhas cada vez menores e geladeiras inteligentes que pedem delivery quando sentimos fome.
Mas e aí, a solução é voltar a ser como era antes? Eu acho que não. Mas acho que parte importante dela é olhar criticamente pra onde estamos indo e entender que tem outros jeitos possíveis de se viver, seja no campo ou na cidade.
Pra mim, esse outro jeito de viver no campo se apóia em algumas coisas:
Ser pequeno: ser pequeno é bonito demais. A solução não está na escala, está na resiliência da força distribuída.
Existir em cooperação: a vida só existe porque existe a cooperação, disse Lynn Margulis. Compartilhar o trabalho de plantar e colher é uma das experiências mais poderosas que vivi nos últimos tempos. A gente quer que todo mundo se alimente bem. Não tem mais ou menos pra quem fez mais ou menos. Assim como em nosso organismo, a solução está nos milhares, diferentes e microscópicos seres vivos que nos compõem. Muitos, diferentes, pequenos, fazendo juntos. Assim como pode ser plantar na cidade. Uma micro revolução silenciosa.
Mas o sistema não cria condições pra que isso aconteça. Ele pune esse jeito de existir.
Ele penaliza a pequena agricultura e premia a grande agricultura.
E de repente esse movimento de viver no campo e do plantio vira coisa de heróis. E não deveria ser coisa de heróis. Mais gente deveria conseguir fazer isso.
Então minha utopia tem sido conseguir usar meu tempo, meus privilégios, meus conhecimentos pra apoiar mais pessoas que desejam e sintam que podem plantar.
Pode ser uma sementinha na casca de ovo em casa. Pode ser num vaso na parede ou no canteiro da calçada em frente da sua casa. O que vale é começar. Experimentar. Observar. Errar. Aprender com o erro. Fazer de novo. Colher. Convidar alguém pra compartilhar seus frutos. E começar tudo de novo.
Porque sim, plantar é cíclico. É um dia que não tem fim. É lindo demais. Bora começar?
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